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Tudo o que não sabemos (e aquilo que achamos que sabemos) (29/03/20)

Atualizado: 3 de abr. de 2020

Maiko Rafael Spiess Sociólogo e Doutor em Política Científica e Tecnológica Núcleo de Estudos da Tecnociência - Universidade Regional de Blumenau


Uma questão central na atual crise do coronavírus é o problema da tomada de decisão. De governos a indivíduos, estamos sendo confrontados com escolhas para as quais não estamos completamente preparados. Em especial, pelo caráter inédito da crise: nossas gerações atuais não possuem um modelo ou protocolo, e muito menos a experiência, para lidar com a pandemia de COVID-19. Individualmente, fazemos aproximações grosseiras e estimativas muito vagas sobre o risco que corremos. Coletivamente, alternamos entre soluções opostas e algumas vezes extremas: restrição ou afrouxamento totais; quarentena ou #OBrasilNãoPodeParar? Para piorar, vivemos em um ambiente de abundância de informações e alta intensidade em suas trocas (característica da cultura digital das redes sociais). Com isso, somos sobrecarregados e perdemos nossa capacidade de avaliação crítica. Em resumo, superestimamos nossa capacidade de avaliar corretamente a situação.


Portanto, em primeiro lugar, é preciso reconhecer tudo o que não sabemos. Isso envolve desde aspectos conceituais sobre doença, epidemia, medidas sanitárias etc. até a capacidade de produção de dados sobre os casos e mortes causados pela COVID-19. Uma posição sensata seria reconhecer o alto grau de incerteza do problema. Infelizmente, multiplicam-se especialistas de ocasião em epidemias, contágio, formas de tratamento e gestão de crises. Potencializados pela infraestrutura da informação (alta disponibilidade e baixo custo da informação), leigos convertem-se em supostos peritos. É legítimo que as pessoas tenham opiniões e possam manifestá-las; não se trata de reprimir a participação na discussão pública. Ocorre que existe uma diferença substancial entre as pessoas em relação ao tipo de conhecimento que dominam, e essa diferença se reflete em uma divisão do trabalho.


É óbvio: em situações normais, se estou doente vou ao médico. Esses profissionais são especializados, pois passaram por anos de formação e experiência na prática. Podem, eventualmente, até errar. Mas, em geral, sabem mais sobre doenças e o corpo humano do que eu e você. No dia-a-dia, portanto, reconhecemos que sabemos menos do que os médicos e nos submetemos à legitimidade que eles possuem derivada desse fato. Reconhecemos o que não sabemos. Então, porque em situações extremas deveríamos pensar de forma diferente? Se conheço pouco sobre a distribuição da população em um território, tenho que dar atenção ao geógrafo. Se entendo pouco da economia, devo considerar as informações dos economistas. Se não sei como se comporta um vírus, talvez devesse ouvir um biólogo ou infectologista. Ninguém pode saber tudo sobre tudo. Frequentemente, porém, ignoramos o que não sabemos. E esse é um erro.


É claro que profissionais especializados frequentemente divergem entre si. No entanto, a maioria das pessoas ignora também as práticas das comunidades de especialistas e as formas que elas encontram para gerar consensos. As comunidades científicas são, em primeiro lugar, caracterizadas pelo embate aberto entre ideias: dados são avaliados por muitas pessoas em grupos de pesquisa e departamentos de universidades; artigos que resumem descobertas são revisados por editores e outros cientistas, e estão sujeitos à críticas e revisões. Diferentes áreas da ciência se organizam em associações, com profissionais que representam os paradigmas amplamente aceitos por aqueles profissionais. Questões controversas são debatidas e consensos são formados. Ao ignorar esses mecanismos, leigos diminuem a capacidade e importância da ciência para nossa vida atual.


Em outras palavras: para que certas teorias e informações sejam reconhecidas em uma comunidade científica, elas precisam passar por um elaborado processo de competição de ideias. Dados que não são convincentes e teorias que não são consistentes são, frequentemente, eliminadas de circulação. Algumas pessoas que não são cientistas podem intuir isso. Outras, ignoram essa informação. Na maior parte dos casos, em situações de normalidade, essa postura causa pouco dano. Porém, em situações extremas, ela permite o surgimento de soluções e comportamentos que ampliam os problemas. No caso da COVID-19 isso significa uma potencial exposição desnecessária ao risco, uso de soluções terapêuticas não testadas (como no caso do prefeito que recomenda homeopatia para aumento da imunidade ao coronavírus sem evidências), avaliações econômicas superficiais e soluções políticas imperfeitas.


Ainda considerando o caso da COVID-19: como estamos baseando nossas decisões? Em quais dados? Como medir a gravidade da situação? Os dados sobre o contágio e mortalidade provém, em sua maioria, de órgãos oficiais que possuem um corpo técnico especializado neste tema. Não são, portanto, sujeitos aos vieses e limitações de uma leitura individual. Uma pessoa individualmente não é capaz de produzir esse tipo de dado, com a mesma qualidade e escala. Se ninguém da minha família ou da minha vizinhança está doente, isso não significa que eu possa falar o mesmo a respeito da cidade, estado ou país. Minha capacidade pessoal de produzir dados é limitada pela minha cognição, posição social, localização etc. Dados oficiais possuem, assim, impessoalidade e volume necessários para evitar que minha opinião distorça a avaliação sobre a situação.


Os dados oficiais possuem, sim, limitações importantes. No caso atual, são provavelmente incompletos por conta dos problemas dos indivíduos assintomáticos e da subnotificação (ou confusão na definição de causas de morte). Por um lado, muitas pessoas não desenvolvem sintomas e, não sabendo do contágio, transmitem o vírus para outros. Este é um fenômeno epidemiológico reconhecido, cientificamente descrito e que está em atuação neste exato momento. Por outro lado, no caso brasileiro, a quantidade de testes é significativamente menor do que de países como a Coréia do Sul. Como o diagnóstico final ainda é realizado por meio de exames laboratoriais e não a partir dos sintomas apenas, temos possivelmente uma avaliação menosprezada do real número de pessoas contaminadas.


Neste ponto, uma ressalva: no mundo do WhatsApp e redes sociais correm boatos de que os casos estariam (ao contrário do exposto acima) sendo superdimensionados por interesses políticos. Esse argumento pressupõe que a comunidade de médicos e cientistas ou é mal-intencionada ou desinformada. Ora, por conta dos mecanismos de produção coletiva de consenso já mencionados, a manutenção dessa suposta conspiração seria insustentável. Note-se que os boatos se baseiam em evidências anedóticas - “um amigo meu me contou” - e não em informações agregadas, relatos certificados, depoimentos públicos recorrentes. Isto é, as contra-evidências são, até o momento, muito fracas para garantir ao boato um olhar mais sério.


Em uma situação de alta complexidade e com efeitos potenciais muito graves, é necessário reconhecer tudo o que não sabemos e reavaliar aquilo que achamos que sabemos. É verdade que o grau de incerteza atual é muito grande e as inquietações são múltiplas. No entanto, não é produtivo se deixar levar pelo alarmismo ou por opiniões que são definitivamente parciais e incompletas. Em especial, é preciso tomar cuidado com a mobilização política dessa ignorância: cientistas são humanos sujeitos ao erro, mas seu processo de produção de conhecimento é ainda a melhor forma de conhecer o mundo e orientar nossa ação. Governantes populistas, organizações ou indivíduos motivados por benefício próprio frequentemente ignoram ou menosprezam a Ciência porque suas conclusões podem ser inconvenientes.


Para concluir, vale lembrar que a pior posição possível nas crises é o elogio à ignorância. Reconhecer as limitações de nosso conhecimento e nossas ideias é difícil, porém é também uma atitude nobre. Perceber que nossos líderes ignoram as orientações científicas e condenar essa postura não é fraqueza, mas sim virtude. Sobretudo, na situação atual, não reconhecer a autoridade conferida pelo conhecimento de médicos e cientistas é uma falha moral. Quando lidamos com a vida humana, devemos nos guiar pelo princípio da precaução: agir tendo como base as implicações negativas e mais dramáticas de nossas ações. E, para chegar nessa posição, devemos olhar para quem possui mais conhecimento do que nós.

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