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  • 22 de abr. de 2020
  • 4 min de leitura

Prof. Dr. Maiko Rafael Spiess

mspiess@furb.br


Ao longo de sua carreira política, Jair Messias Bolsonaro demonstrou pouca proximidade aos temas e políticas públicas relacionadas à Ciência, Tecnologia e Inovação. Durante seus 26 anos como congressista, propôs 171 projetos de lei. A maioria deles se concentrava em interesses dos militares (portanto, corporativistas) e de segurança pública. Em seu histórico como legislador também proliferam irrelevâncias como a proposta de inclusão do ex-deputado Enéas Ferreira Carneiro no Livro dos Heróis da Pátria e da obrigatoriedade de que os civis tenham de colocar a mão sobre o peito quando da execução do hino nacional. (veja aqui e aqui).


Apenas dois de seus projetos foram aprovados. Curiosamente, ambos tocam de alguma forma no tema da Ciência, Tecnologia ou Inovação. Um deles trata da isenção do Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) para bens de informática (PL 2514/1996). O outro, muito tempo depois, tratou do uso da fosfoetanolamina sintética - a “pílula do câncer” (PL 4510/2016). Embora o projeto tenha sido apensado a outros semelhantes e assinado por outros 25 parlamentares, ficou vinculado à imagem de Bolsonaro dado seu envolvimento ativo na questão.


De fato, na proposição sobre a fosfoetanolamina havia pouco conhecimento científico e muito populismo. Desde o princípio, a eficácia da substância para o tratamento de neoplasias malignas foi questionada pela comunidade científica organizada. Eventualmente, os ensaios clínicos da substância foram interrompidos por questões éticas e pela ineficácia do tratamento: em um dos estudos, 58 de 59 pacientes com câncer que haviam recebido regularmente a fosfoetanolamina não apresentaram qualquer resposta ao tratamento. Em resumo, a discussão sobre o medicamento tinha uma baixa cientificidade.


Ocorre que a mesma linha de raciocínio se repete agora, durante a pandemia de COVID-19. Para muitos, a cloroquina é a nova fosfoetanolamina. A cloroquina e a hidroxicloroquina (uma formulação diferente, mas com a mesma substância básica) são originalmente utilizadas para o tratamento de malária e condições autoimunes (como artrite e lúpus). Ocorre que testes recentemente divulgados sobre o uso da cloroquina em pacientes com COVID-19 iniciaram um surto infodêmico sobre o tema, com aumento de sua visibilidade e expectativas sobre sua eficácia.


No centro deste surto estão figuras públicas como Donald Trump e Jair Bolsonaro, importantes vetores da transmissão de rumores, imprecisões e promessas vazias sobre a cloroquina. No caso brasileiro, ao analisarmos a dinâmica das buscas realizadas por brasileiros no Google em um período recente, podemos perceber a relação entre a campanha pessoal de Bolsonaro a respeito da substância e um aumento no interesse geral da população sobre o tema, conforme o gráfico abaixo. Para cada fala de Bolsonaro sobre o remédio, se seguiram a cobertura da mídia e o inevitável aumento das buscas sobre a substância.


Declarações de Bolsonaro sobre a cloroquina

e a dinâmica de buscas no Google

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Elaboração própria, baseado em:


Conforme crescem as ressalvas sobre o medicamento, parece se repetir em certos círculos a mesma postura anteriormente observada com o caso da “pílula do câncer”: um otimismo que beira o pensamento mágico. É como se a cloroquina devesse funcionar porque se acredita que ela precise funcionar. Dessa forma, são ignoradas as evidências científicas, os procedimentos formais e burocráticos necessários para a aprovação de medicamentos e os possíveis efeitos negativos da substância. Infelizmente, os testes clínicos possuem um ritmo diferente daquele que está sendo ditado pela política e pela esperança das pessoas.


Cabe ainda lembrar que corremos o risco de cair em mais uma busca fantástica por uma cura milagrosa. É que um medicamento misterioso anunciado pelo Ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes, surge como a mais nova promessa no combate ao coronavírus. Aparentemente, pouco importa que especialistas afirmem que os testes in vitro mencionados pelo Ministro sejam, do ponto de vista científico, evidências preliminares que necessitam de estudos mais aprofundados. Seja por ingenuidade (pensamento fantástico) ou por cálculo político, mais um hiperbólico discurso de esperança é formulado pelos gestores no nível federal.


Por fim, é importante lembrar que não se trata de condenar a busca pela cura ou formas de atenuar os sintomas da COVID-19. Na verdade, trata-se de dimensionar corretamente a eficácia e os possíveis efeitos colaterais de qualquer solução que venha a ser proposta. Temos em nosso país uma educação de baixa qualidade e, portanto, uma formação insuficiente sobre as minúcias científicas necessárias para compreender virologia, epidemiologia ou farmacologia. Esse déficit de conhecimento aliado à politização da pandemia pode potencializar as mortes e danos. É preciso mais responsabilidade com esse assunto tão sério.


Todos queremos que a pandemia passe e que a vida volte ao normal. No entanto, isso não irá ocorrer apenas por efeito de nosso pensamento ou desejo. A superação da emergência passa pelo debate crítico, a avaliação cientificamente embasada e as decisões por meio de processos democráticos. Em resumo, o pensamento complexo no lugar da simplicidade e credulidade do pensamento mágico; o debate de alto nível ao invés da polarização e histeria das “bolhas” de redes sociais. Do tema da cloroquina ao isolamento social, necessitamos nos voltar mais à Ciência do que às nossas crenças.


 
 
 
  • 21 de abr. de 2020
  • 4 min de leitura

Dr M. MATTEDI

Universidade Regional de Blumenau


Desde o surgimento da Covid-19 vimos a tendência de transformar o Distanciamento Social num campo de batalha de conflitos políticos e culturais preexistentes. Por isto, na maior parte das vezes é muito difícil saber o que exatamente está acontecendo e, sobretudo, o que deve ser feito. Questões altamente técnicas como as métricas de contágio (R 0/1) convertem-se numa questão de preferências ideológicas. Por exemplo, quanto tempo deve durar o Distanciamento Social? E, mais perturbador ainda, devemos acreditar ou duvidar da resposta? O novo alvo agora do processo de polarização constitui as pesquisas sobre o Distanciamento Social.


A diluição do conhecimento objetivo na internet constitui a principal ameaça na COVID-19. A objetividade constitui a qualidade de um julgamento que descreve os acontecimentos e as coisas (fatos) com precisão. Porém, a precisão da descrição dos acontecimentos depende dois fatores: a) Ético: aponta para neutralidade face o acontecimento (validade do julgamento); b) Epistêmico: aponta para a adequação da representação do acontecimento (veracidade da observação). Portanto, a objetividade constitui uma operação ao mesmo tempo normativa e cognitiva: evitar que nossas preferências (valores) afetem nossas constatações (observações).

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Com a emergência das mídias sociais o problema da objetividade se agravou ainda mais. Isto acontece porque devido aos algoritmos as mídias sociais acabam potencializando os feitos da Heurística de Disponibilidade. A Heurística de Disponibilidade compreende a tendência cognitiva de considerar, preferencialmente, os exemplos imediatos ao avaliar um tópico, conceito, método ou decisão específica. Assim, como para bilhões de pessoas para quem as mídias sociais constituem a principal fonte de informação a tendência a sobrevalorizar as informações disponíveis é grande. Assim, as mídias sociais reforçam algoritmicamente nossas próprias convicções.


A consideração dos vieses cognitivos é importante por ajudar a entender os problemas de objetividade em geral e os relacionados a COVID-19 em particular. Frequentemente, constituem o efeito combinado de quatro processos cognitivos principais: muita informação + pouco sentido + necessidade de agir rápido + memória falha = viés cognitivo. Temos muita dificuldade de lidar com informações complexas. Por isto, para reduzir a complexidade de informações utilizamos módulos mentais que simplificam nossas escolhas. Ou seja, nascemos prontos para sermos enganados. Afinal, cognitivamente, é sempre mais fácil acreditar que duvidar!


Neste sentido, é emblemático o caso do Viés de Confirmação. O Viés de Confirmação constitui um processo cognitivo que reforça nossas próprias crenças. Indica a propensão seletiva das pessoas na coleta e na interpretação das informações: quanto maior a carga emocional e quanto mais arraigada a crença maior a influência do Viés de Confirmação. Isto significa que quando submetida a situações de incerteza a influência seletiva do Viés de Confirmação é ainda mais pronunciada. Portanto, para sermos objetivos precisamos examinar, ao mesmo tempo, tanto nossos processos cognitivos quanto o modo de operação das mídias sociais.


O problema de avaliar objetivamente o Distanciamento Social pelas mídias sociais é, portanto, que neste contexto os cenários mais extremos acabam sempre tendo o maior peso. É por isto que as duas narrativas mais extremas da COVID-19 é que prevalecem: a) Negacionismo: reconstrução os acontecimentos relativos a COVID-19 que minimiza os efeitos da crise; b) Alarmismo: reconstrução da COVID-19 que amplifica os efeitos da crise. Isto acontece porque uma das características das narrativas constitui a negação de que exista uma realidade independe das crenças: toda vez que a realidade resiste as narrativas, os fatos são adaptados as narrativas.


Assim, embora o vírus exista objetivamente (fato), o que importa mesmo são as interpretações (narrativa). Mesmo que a OMS e os especialistas se esforcem para entender e controlar a COVID-19 através do Distanciamento Social os fatos não contam. É que embora estejamos fisicamente protegidos do risco de contágio pelo Distanciamento Social, não estamos cognitivamente imunes ao contágio de notícias produzidas ininterruptamente pelas mídias sociais. Paradoxalmente, apesar de podemos nos proteger fisicamente do contágio da COVID-19, não conseguimos evitar o contágio cognitivo do ativismo ideológico interpretativo.


Isto acontece porque a objetividade envolve um combate, ao mesmo tempo, contra si mesmo e contra a customização da informação. Por um lado, uma luta contra nossa propensão cognitiva a acreditar no que reforça nossas crenças (Viés de Confirmação); e, por outro, as disposições das tecnológicas da economia da atenção (Filtragem Algorítmica). Afinal, quanto maior a quantidade de informação disponível, mais rapidamente a credibilidade se propaga. Neste sentido, a intersecção entre fatores cognitivos e fatores tecnológicos constitui um espelho cognitivo refletido que torna as informações falsas mais difíceis de detectar e, possivelmente, de erradicar.


A objetividade constitui uma propriedade da racionalidade. A racionalidade constitui uma relação de correspondência entre crença e evidência. Neste sentido, coloca, de um lado, a crença científica, e, de outro, a crença não-científica. Isto significa que na ciência que a crença deve ser alta somente quando as evidências também forem altas (forma do contágio do COVID-19); já, na crença não-científica, a crença pode ser alta e as evidências baixas (eficácia do hidroxocloroquina), ou as evidências altas e a crença baixa (Distanciamento Social). Daí a importância de usar a racionalidade para realmente entender o que acontece com a adoção do Distanciamento Social.

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O problema é que não sabemos mais nem acreditar e nem duvidar. Para saber o que aceitar e o que rejeitar é preciso adotar um método de seleção das informações. Este método é o estudo dos acontecimentos em busca de fenômenos reproduzíveis e falsificáveis, conhecido como espírito crítico: a) comparar os índices; b) avaliar as provas; c) levantar as fontes de informação; d) evitar hipótese supérfluas; e) construir modelos; e) testá-los contra a realidade. Uma pessoa crítica possui um espírito aberto: não rejeita e não aceita nenhuma afirmação a priori. Afinal, aceitar ideias novas sem avaliar, ou rejeitar novas ideias sem avaliar não é racional.

 
 
 
  • 20 de abr. de 2020
  • 4 min de leitura

Dr M. MATTEDI

Universidade Regional de Blumenau


As informações falsas sobre a COVID-19 se espalham mais rapidamente que o vírus. A todo instante surgem medicamentos e tratamentos milagrosos, teorias do complô, rumor sobre medidas governamentais, imagens distorcidos... Informações falsas nas mídias sociais enfraquecem os esforços para manter o Distanciamento Social. É muito comum atribuir a propagação de informações falsas ao fenômeno de Fake News, porém é também muito equivocado. Afinal, a ideia de Fake News encobre um processo muito mais profundo relacionado a capacidade das pessoas de processarem informação: a) os Atalhos Mentais; b) e as Bolhas de Filtragem.


a) Atalhos Mentais: Para viver é preciso interagir com o mundo. Porém, o mundo é muito complexo; e, nossa capacidade cerebral é limitada. Ocorre, contudo, que não podemos deixar que a falta de informações nos paralise. Afinal, quando percebemos um acontecimento novo precisamos avaliar sua importância e a necessidade de agir. Para reduzir a quantidade de informação criamos Atalhos Mentais para entender e interpretar os acontecimentos. Estes modelos mentais fazem com que nos concentremos em certos aspectos do mundo em detrimento de outros. Mas esses padrões mentais não são muito precisos e nem fáceis de atualizar.


b) Bolhas de Filtragem: Com o surgimento da internet a dificuldade de processamento de informações se intensificou. A diminuição do custo de produção provocou um crescimento exponencial de informações que atualmente encontra-se na ordem de Zettabyte (1021 ou 21 zeros). Aqui entra a questão do C3 (Curadoria do Conteúdo Conectado): como acessar a informação que precisamos da forma mais rápida possível? Para nos ajudar a processar esta massa astronômica de informações as principais mídias sociais desenvolveram algoritmos que customizam as informações para as pessoas que nos aprisionaram em Bolhas de Filtragem.


O efeito combinado de nossa propensão natural a criação de Atalhos Mentais com as Bolhas de Filtragem produzida pelas mídias sociais acabou provocando uma Infodemia. Infodemia constitui uma expressão que junta a ideia de informação com a ideia de epidemia. Descreve uma situação no qual a quantidade excessiva de informações sobre um problema dificulta a sua solução. As informações falsas e verdadeiras se misturam constantemente causando um enorme ruído, e produzindo um Efeito Rumor. Trata-se, assim, da sobrecarga de informação provocada pela supersaturação do uso da internet em geral e das mídias sociais em particular.


Rumores são informações não verificadas. Surgem durante momentos de incerteza, quando as pessoas tentam entender situações ambíguas. Isto significa que a pessoa que manipula a informação não sabe ao certo se ela é verdadeira ou falsa. Cognitivamente os rumores possuem um ciclo de vida: a) iniciam quando uma informação é colocada em discussão; b) se propagam quando a informação é discutida; c) e acabam quando a informação deixa de ter interesse. Portanto, alguns estudos indicam que existe uma relação linear positiva entre incerteza e a taxa de transmissão de rumores: quanto maior a incerteza, maior a circulação de rumores.


Portanto, a profusão global de informações na COVID-19 acabou desencadeando também uma espécie de Surto Infodêmico. Afinal, acompanhar a rápida mudança das instruções e respondê-las adequadamente constitui um desafio para a maior parte das pessoas. Isto acontece porque processar a informação adequadamente é sempre uma tarefa muito difícil. Embora o acesso à informação tenha aumentado, algumas das respostas em massa indicam a falta de entendimento da situação em sua totalidade. Isto acontece porque para entender o Distanciamento Social as pessoas enfrentam barreiras à compreensão que são, ao mesmo tempo, cognitivas e técnicas.


Este processo pode ser ilustrado considerando os impactos negativos da circulação de informações falsas sobre o Distanciamento Social no Facebook. Segundo o estudo How Facebook can Flatten the Curve of the Coronavirus Infodemic milhões de usuários da plataforma são colocados em risco de consumir produtos nocivos de desinformação sobre o Coronavírus em larga escala. O estudo baseou-se em 100 peças de conteúdo de desinformação em seis diferentes idiomas sobre o vírus. E o caso Facebook é apenas a ponta do iceberg, afinal o Twitter, Instagram, YouTube ou Grupos de Whatsapp também são potenciais vetores de transmissão de informações falsas.


No Brasil os efeitos do Surto Infodêmico são ainda mais perniciosos devido a politização da gestão da COVID-19. É que a polarização entre Quarenteners e Cloroquiners propulsada pela subordinação da agenda sanitária à agenda política acabou comprometendo os efeitos de contenção do Distanciamento Social. De um lado, um conjunto de pessoas recomendando que as pessoas permanecessem isoladas; enquanto, de outro, incentivando as pessoas a saírem de casa. A ambiguidade entre o Viés de Normalidade e o Viés de Anormalidade torna no Twitter, Facebook ou no Whatsapp diante do Distanciamento Social aumenta o desconforto das pessoas sobre suas escolhas.


O monitoramento do Surto Infodêmico envolve a consideração tanto de nossos Atalhos Mentais quanto das Bolhas de Filtragem. Afinal, o Surto Infodêmico sobre a COVID-19 constitui um efeito emergente do Distanciamento Social. É que a diminuição do contato direto, implica um aumento do contato indireto. Neste sentido, a relação entre o Surto de Conronavírus e o Surto Infodêmico é inversamente proporcional:quanto menor o risco de contágio de SARS-CoV-2, maior o risco de informações falsas. É que a utilização de mídias sociais aumenta com o Distanciamento Social. Ou seja, quanto maior o contato indireto, maior a exposição ao SurtoInfodêmico.

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Um novo vírus atinge o planeta, talvez ainda mais mortal e, certamente, mais difícil de conter. O Surto Infodêmico é mais perigoso e durará mais que a COVID-19. Precisamos ter claro, portanto, que não estamos lutando apenas contra a COVID-19, mas também com a Infodemia. A Infodemia provoca dano público e agrava ainda mais o problema da subnotificação: não somente não sabemos o que está acontecendo, mas também estabelecemos uma imagem distorcida dos acontecimentos. Afinal, a desinformação sobre o Distanciamento Social dificulta os esforços de combate da COVID-19 e, no limite, pode acabar custando, potencialmente, mais vidas.

 
 
 
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