Prof. Dr. Maiko Rafael Spiess
mspiess@furb.br
Conforme avança a pandemia, prossegue a politização dos debates sobre a manutenção do isolamento e a reativação da economia. Essa tensão se manifesta no governo federal na relação conflituosa entre Bolsonaro e o Ministro Mandetta. Também surge na pressão que entidades patronais vem exercendo sobre governos locais. Em Santa Catarina, é observada nas reações negativas e na mobilização de deputados contra as políticas de distanciamento e abertura seletiva de setores econômicos elaborada pelo governador Moisés (PSL) e sua equipe.
A esta altura, deveria ser mais evidente que o reducionismo das soluções binárias serve apenas aos agentes políticos que, de maneira oportunista, constroem narrativas politicamente baseadas nos medos (econômicos e de saúde) da população. Quando analisadas com maior detalhe e com base em procedimentos técnicos e conhecimentos científicos, frequentemente se descobre que as soluções envolvem mais elementos do que o senso comum pode supor.
Tomemos, por exemplo, a discussão proposta por Leandro Ludwig a respeito da relação entre a vitalidade econômica de uma cidade e a curva de contágio: ao invés de soluções extremas, é possível pensar em modelos que busquem um patamar seguro para a retomada das atividades econômicas sem comprometer a segurança das pessoas ou descuidar da questão do contágio.
De todo modo, o processo de tomada de decisão individual e coletiva deve considerar um elemento ainda não muito claro da dinâmica da pandemia: a possível subnotificação dos casos de COVID-19. Neste sentido, podemos supor que a falta de informações corretas sobre o número de casos e de mortes induzam percepções e escolhas erradas diante da emergência, potencializando o Viés de Normalidade (neste caso, a tendência a subestimar os possíveis efeitos negativos da pandemia). Portanto, para melhorar o processo decisório, é necessário aumentar a qualidade das informações disponíveis.
Em linhas gerais, a subnotificação pode se dar pela ausência do relato de casos ou óbitos causados por uma doença, ou sua atribuição incorreta a uma causa semelhante. Em termos práticos, para a COVID-19, a notificação dos casos depende de um diagnóstico baseado em testes e contraprovas - quesito no qual o Brasil ainda está muito aquém de outros países, em números absolutos e proporcionalmente à população. A explicação passa pela ausência de insumos (testes, reagentes etc), a dependência de fornecedores estrangeiros e, é claro, pela falta de preparo geral para a situação.
A verdadeira extensão da subnotificação é ainda uma incógnita e as respostas para a questão estão sendo construídas de forma gradativa, do ponto de vista técnico-científico e político. No campo científico, enquanto a solução ideal da testagem em massa não é possível, surgem argumentos diversos. Por um lado, investiga-se a curva de contágio local em comparação com a de outros países (por exemplo, a Coreia do Sul), com projeções baseadas em modelos matemáticos. Nessa direção, existem estimativas de que o número de casos reais pode ser algo entre 12 e 15 vezes maior do que as notificações oficiais.
Assim, partindo dos casos oficiais relatados em 15/04 e considerando as projeções de subnotificação teríamos as seguintes estimativas:
CASOS CONFIRMADOS E PROJEÇÕES
Fontes: Johns Hopkins University, Ministério da Saúde, Governo do Estado de Santa Catarina, Prefeitura Municipal de Blumenau (dados de 15/04)
É claro que existe uma grande incerteza em relação a esses números, afinal eles não consideram a eficácia/ineficácia das políticas de isolamento social (leia mais aqui), as diferenças urbanísticas e de densidade demográfica em diferentes regiões (leia aqui) e, afinal, a dinâmica epidemiológica em diferentes contextos. São, sobretudo, modelos e projeções que vão ganhando força ou sendo desacreditados apenas com o decorrer da epidemia. Assim, por um lado até podem possuir uma função na gestão do evento. Por outro, porém, podem influenciar o pânico e o Viés de Anormalidade.
Outras metodologias podem ajudar a criar narrativas científicas diferentes, mas complementares. Neste sentido, é possível citar o aumento observado de internações por síndrome respiratória aguda, uma das possíveis causas de óbitos decorrentes da COVID-19 e, portanto, indicador de subnotificação. Ou ainda, testes realizados por amostragem em populações normais, para verificar a proporção de casos assintomáticos e de pessoas com resposta imunológica (“curadas”), como um estudo conduzido pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Assim, se acumulam evidências que serão cientificamente escrutinadas.
No campo político, no entanto, o tema da real extensão da epidemia é diariamente empregado. Por um lado, surge a narrativa da negação - isto é, a argumentação de que os casos e óbitos reais são menores do que os divulgados; um caso exemplar disso é a fake news, repercutida por meio de robôs em redes sociais, do borracheiro que teria morrido em um acidente de trabalho e cuja certidão de óbito indicaria morte por COVID-19. Uma variação mais oficial dessa estratégia é a narrativa Bolsonaro/Osmar Terra, que indica que a epidemia estaria já em uma fase de desaceleração.
Por outro lado, prefeitos, governadores e o próprio ministro Mandetta, ao incorporarem o discurso científico, procuram mobilizar dados certificados em favor de uma imagem de gestor responsável. Não sabemos como são tratadas, nos bastidores políticos, as questões da subnotificação e do crescimento dos casos, mas é possível supor que pairem como um fantasma sobre as mesas e gabinetes oficiais. Se menosprezadas, terão um custo político alto pelas mortes e colapso dos sistemas de saúde. Se superdimensionadas, impactam as medidas de isolamento e, portanto, a economia. A resposta correta, os dados e o tempo dirão.
Atualização: entre a elaboração e publicação deste texto, o estudo da UFPEL mencionado acima divulgou seus primeiros resultados. Segundo os pesquisadores responsáveis, a pesquisa demonstrou que o número de casos assintomáticos ou “subclínicos” seria em torno de sete vezes maior do que os números oficiais. Nessa métrica, o Brasil teria aproximadamente 198.240 casos; SC, 6.188 e Blumenau, 553. No entanto, convém lembrar que a população e a dinâmica epidemiológica observadas podem não ser representativas da realidade brasileira, que as práticas de isolamento afetam o contágio etc.
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