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Maiko Rafael Spiess

Sociólogo e Doutor em Política Científica e Tecnológica

Núcleo de Estudos da Tecnociência - Universidade Regional de Blumenau


Todos nós conhecemos alguém que está preocupado com uma nova crise econômica, decorrente da pandemia de coronavírus. Desde os trabalhadores, apreensivos com a possível demissão, passando pelos pequenos empresários que buscam honrar seus compromissos financeiros, até os grandes conglomerados internacionais, quase ninguém deseja um colapso econômico. Afinal, as condições de vida se degradam muito em economias estagnadas ou recessivas. Infelizmente, é certo que a crise virá. A questão agora é o tamanho e duração da crise, e como as famílias, firmas e governos vão atravessar mais essa dificuldade.


Como seria esperado, propostas diversas ganham espaço no debate público, evidenciando e opondo diferentes posições políticas e sociais. Obviamente, dado o tamanho e ineditismo da crise, os debates se tornam acalorados: sem perceber, somos arrastados para a lógica da polarização, que vê tudo apenas em extremos absolutos. Um exemplo são as carreatas no estilo “O Brasil não pode parar”, que ocorreram em diversas cidades do país e as reações a ela. Ou ainda, os pronunciamentos de autoridades e entidades patronais que parecem dividir diariamente o Brasil em dois: saúde e segurança versus economia e liberdade. Aparentemente, posições radicalmente distintas e irreconciliáveis.


Ocorre que muita gente ainda não sabe como agir. Por um lado, o argumento a favor do isolamento parece uma narrativa mais sólida, baseada em dois fatos complementares: a) a abundância de dados epidemiológicos sobre os casos confirmados e mortes; b) a guinada política de líderes previamente resistentes à estratégia do isolamento, como Boris Johnson e Donald Trump. Infelizmente, a idéia e as práticas de isolamento social funcionam de forma diferente para pessoas de classes sociais diferentes: para alguns pode ser aplicada tranquilamente, para outros (frequentemente mais pobres) é tarefa quase impossível. Além disso, quanto mais longo o isolamento compulsório, mais incertezas e mudanças na vida social.


O argumento a favor da economia parece menos articulado: parte de um ponto justificável (as atividades econômicas sustentam boa parte de nosso modo de vida), mas trabalha ainda com conjecturas e expectativas que não podem ser até o momento corretamente mensuradas. Paradoxalmente, portanto, são menos racionais do que a cautela que opera no modelo de isolamento. Vejamos uma afirmação recorrente do argumento econômico: “a economia já está parada”. Com mais calma, é possível perceber que vários setores continuam operando (infraestrutura de serviços essenciais, saúde, segurança pública) e outros estão desacelerados, mas ativos. Por fim, novas atividades econômicas certamente surgirão durante e após a COVID-19. Existe a economia real e a economia imaginada.


Todavia, a polarização não nos permite perceber essas sutilezas. Em particular, no caso da histeria econômica, as pessoas parecem incapazes de perceber a natureza adaptável e socialmente determinada das atividades econômicas. Os partidários dessa posição pensam no mundo apenas como ele era e não como ele poderá vir a ser. Assim, é muito importante compreender a origem de boa parte das apreensões dos partidários de uma economia ativa durante a pandemia, para melhor dialogar com eles nesta situação. O que gera sua insegurança? Quais os pressupostos que condicionam sua posição? Certamente, uma análise sociológica pode contribuir para responder algumas dessas perguntas. Alguns pontos para o debate:


Padrões de consumo em uma sociedade de abundância: na maioria das sociedades contemporâneas, mesmo uma pessoa pobre possui mais acesso a bens de consumo e serviços do que, digamos, um nobre na Idade Média. Isso ocorre por conta do processo histórico de industrialização da produção, aumento da eficiência e produtividade do trabalho. Dentre as inúmeras consequências disso, tornamos o consumo mais acessível e, assim, também uma escolha identitária ou de distinção social. Por isso, ter que reduzir o volume de consumo ou ter que lidar com a escassez de certos produtos representa, para algumas pessoas, um choque psicológico. No entanto, do ponto de vista de nossa subsistência, nossa sociedade consome muito mais do que, de fato, necessita. Assim, para boa parte das pessoas, existe um desajuste entre padrão de consumo e necessidades mínimas, que não é ainda claramente percebido.


Judicialização das relações sociais e econômicas: mercados complexos frequentemente recorrem aos governos e sistemas jurídicos para sua regulação. Dadas as imperfeições inerentes aos mercados, essa intervenção se intensifica em momentos de crise. Some-se a isso a expansão das profissões jurídicas e atividades profissionais associadas e teremos uma economia mais baseada na resolução burocrática de conflitos do que em arranjos informais. É possível supor, então, que o medo da quebra de compromissos negociais e de sua possível judicialização pressione atores econômicos a manter suas atividades, mesmo em condições adversas.


Bancarização e a armadilha do credit score: outro processo envolvido é a recente expansão dos serviços bancários, de pagamento e crédito, que gradualmente substituem arranjos informais como, digamos, o “fiado” e os pagamentos em dinheiro. A profissionalização do crédito (do latim credere, acreditar) gera sistemas impessoais de classificação (avaliações de risco bancário, cadastros de devedores) que podem criar uma espécie de “estigma” econômico, vinculado aos maus pagadores. Esse estigma impede ou aumenta significativamente o custo de transações futuras, bloqueando uma parte significativa da vida econômica de empresas e indivíduos. A aversão à armadilha do crédito é, nesse sentido, mais uma forma de pressão pela manutenção de atividades econômicas.


Políticas governamentais incertas ou insuficientes: em algumas vertentes de análise e política, o Estado se apresenta como um agente econômico importante, realizando atividades e serviços que não são acessíveis, via mercado, para certas parcelas da população. Em casos de calamidades, este papel é ainda mais destacado, para gerir tanto o evento causador quanto seus impactos futuros. No caso atual, essas respostas passam pela organização da resposta sanitária, pela transferência de renda para pessoas atingidas, pela indução da atividade econômica e reformas no ordenamento jurídico. No Brasil, porém, as respostas atuais são desencontradas - vide as posições contraditórias entre os governos federal, estadual e municipal - e ainda muito politizadas. A incerteza do ponto de vista do governo se transfere, assim, para as empresas, trabalhadores e consumidores, que não encontram garantias sólidas de ajuda econômica e humanitária. Dito de outra forma, se não há sinalização e ações claras das autoridades, as pessoas tendem a continuar operando a partir dos pressupostos existentes.


Analisados em conjunto, esses e outros fenômenos sociais, políticos e econômicos nos permitem compreender melhor a posição “economia e liberdade”, manifestada por setores diversos da sociedade. Dessa compreensão, também é possível avançar o debate para posições mais propositivas, que não ignorem ou desprezem as inseguranças dos agentes econômicos, mas que construa soluções possíveis para o enfrentamento inicial da crise:


Consumo consciente, local e trocas solidárias: a preferência pelo comércio local, atividades cooperativas e solidárias pode possibilitar maior sustentabilidade dos pequenos negócios e dos profissionais autônomos, que possuem menor capacidade de resistir às crises econômicas. Além disso, redes de solidariedade, de troca de produtos e serviços etc. podem ajudar com a manutenção das condições de vida, por meio de transações que não tenham o ganho monetário como principal motivador.

Soluções negociadas ao invés de resoluções impessoais: a judicialização das situações de quebras de compromissos comerciais, o controle rígido da força de trabalho e intransigência em geral potencializam os efeitos sociais da crise, pois atingem principalmente os atores menos privilegiados. Assim, partindo de governos e grandes players do mercado, e chegando nas relações entre pequenos agentes da economia, a complacência, maleabilidade dos contratos e a transferência dos compromissos para o futuro parece ser uma alternativa viável.


Oferta não-predatória de crédito e auxílio governamental: a julgar pelas ações de governos nacionais e locais ao redor do planeta, percebe-se uma tendência em direção a soluções que aumentem a liquidez do sistema de crédito, a sustentabilidade de empreendimentos e as condições de vida de trabalhadores e população carente. No entanto, essas políticas precisam ser transparentes e ajustadas gradativamente, considerando as especificidades das economias e o conhecimento técnico e científico, evitando os ruídos de comunicação e distorção por interesses políticos.


É certo que nossa capacidade atual de projeção a respeito do futuro está severamente limitada pela gravidade e velocidade do avanço da pandemia. As proposições apresentadas, por exemplo, pressupõem um certo nível de continuidade e manutenção da vida social como ela existia até a chegada do novo coronavírus. Se caminharmos para uma tendência de isolamento social e intensificação das relações mediadas por tecnologias, a natureza das proposições se altera drasticamente.


Por isso, é importante compreender as reações iniciais à potencial crise econômica, mesmo que em um primeiro olhar elas pareçam contraintuitivas ou até moralmente questionáveis. Como forma de quebrar os impasses gerados pela polarização e politização da pandemia, necessitamos identificar os pressupostos das ações dos agentes econômicos e iniciar uma discussão para ajustá-las a nossa nova realidade. As soluções para o futuro, portanto, não surgem da simplificação do problema e do reducionismo do ponto de vista das soluções. Ao contrário, é preciso compreender a complexidade e as contradições inerentes ao processo que estamos vivendo.

 
 
 
  • 2 de abr. de 2020
  • 4 min de leitura

Atualizado: 3 de abr. de 2020

Dr M. Mattedi Universidade Regional de Blumenau mam@furb.br


Nosso dilema atual é grave: salvar vidas ou salvar empregos? Mais precisamente, considerar os efeitos de curto prazo (Impactos Diretos) ou olhar para os efeitos de longo prazo (Impactos Indiretos). Devemos, assim, considerar a sustentabilidade do sistema de saúde ou a viabilidade da atividade econômico... Ou seja, o dilema é como, diante da dissolução das bases normativas universalizantes e da ambivalência do processo de inovação tecnológica, determinar se as decisões tomadas no presente serão vistas, como justas moralmente e adequadas tecnicamente, no futuro. A questão, portanto, é saber como a gestão da COVID-19 será vista em 2021?


Desde o início da COVID-19 formou-se um consenso sociotécnico sobre a eficácia das medidas Confinamento Social propostas pela OMS na contenção da propagação do vírus. As medidas de Confinamento Social partem do pressuposto que o ritmo de propagação do vírus constitui uma propriedade da intensidade das relações sociais. Afinal, quanto menor a quantidade de contatos diretos que uma pessoa estabelece, menor o risco de contaminação. Visam, neste sentido, retardar o ritmo de contaminação da população interrompendo as cadeias de transmissão. Os resultados positivos observados na Ásia acabaram generalizando sua aplicação.


A questão é como o processo Confinamento Social deve ser implementado. Atualmente é possível diferenciar duas posições predominantes: a) Maximalista: Confinamento Social estrito que é aplicado a toda a população (Isolamento Horizontal); b) Minimalista: Confinamento Social seletivo que é aplicado somente aos grupos de risco (Isolamento Vertical). Neste sentido, enquanto o Isolamento Horizontal enfatiza a importância dos Impactos Diretos de curto prazo; o Isolamento Vertical da prioridade aos Impactos Indiretos de longo prazo. Trata-se, assim, de determinar se estamos fazendo muito (Excessivo) ou se estamos fazendo pouco (Insuficientes).


Assim, por um lado, se a intensidade dos contatos diretos não for drasticamente diminuída existe risco de sobrecarregar a capacidade suporte do sistema de saúde. Devido as características assintomáticas do contágio, a curva de propagação obedece a uma função logística (Curva em S). Nesse sentido, a concomitância de infecções em poucas semanas provocará o colapso a capacidade de atendimento. Este processo pode levar ao racionamento e a aplicação de regras de prioridade entre os pacientes – os que tem mais tempo de vida devem ser priorizados. Portanto, se adotarmos a posição Minimalista corremos o risco de pecar insuficiência de precaução.


Contudo, por outro, um efeito colateral do Confinamento Social é que ele acaba bloqueando também a cadeia a de produção econômica. A imobilidade das pessoas reduz o consumo, a redução do consumo interrompe a produção, a interrupção da produção provoca demissões, demissões... Os impostos. Ou seja, o Confinamento Social pode desencadear uma depressão global. Desse modo, as demissões em massa provocadas pelo colapso da economia irão alterar bruscamente a morbidade da população. Afinal, a renda constitui um dos maiores preditores da saúde. Portanto, adotando a posição Maximalista podemos pecar por excesso de precaução.


Assim, como lidar, ao mesmo tempo, com as consequências sanitária e econômicas da COVID-19? Ou seja, para serem ótimas as medidas devem proteger o sistema de saúde e, simultaneamente, evitar o colapso da economia. Para salvar o maior número de vidas possíveis precisamos evitar a sobrecarga do sistema de saúde, mas também, garantir que este processo não destrua a economia: o senso de emergência envolve a necessidade de amortecer o impacto sanitário da COVID-19 e impulsionar as atividades produtivas. Como pode-se observar, devido à complexidade do processo, pequenos erros de calibragem podem ter grandes consequências sociais.


Isto acontece porque a gestão da COVID-19 não é linear. Pois não se trata somente de comparar a utilidade epidemiológica do Isolamento Horizontal e do Isolamento Horizontal; e, inversamente, comparar a utilidade econômica do Isolamento Horizontal e do Isolamento Vertical, efetuar a análise de custo e benefícios e, depois, escolher. É que o debate entre as posições Maximalista e Minimalista se estabelece num cenário de informações imperfeitas. Desta forma, os cenários disponíveis permanecem ainda muito incertos. Afinal, as diferenças entre o Isolamento Horizontal e o Isolamento Vertical não são de ordem discretas, mas contínuas.


Por isto, a gestão de situações de emergência deve ser condicional. Entre as posições Maximalistas e Minimalistas existem quatro opções: a) a Maximalista pode estar certa; b) a Minimalista pode estar certa; c) as duas estratégias estarem certas; d) as duas estratégias estarem erradas. É bem possível que ambas estejam certas e erradas ao mesmo tempo... Isto acontece porque a gestão da emergência se estabelece por um ajuste contínuo das medidas no processo de implementação. Portanto, estamos submetidos ao Paradoxo das Consequências: boas intenções pode ter consequências positivas, enquanto más intenções podem ter consequências positivas.


É que agir no presente tendo vista um acontecimento futuro recai sempre na Inconsistência Temporal. A Inconsistência Temporal diz respeito a tendência de mudança de preferências ao longo do ponto. Ou seja, o “agora” (Presente) tem sempre maior valor que o “depois” (Futuro). Desse modo a percepção gestão da COVID-19 no futuro depende, fundamentalmente, de duas questões: a) Perfeição do Compromisso: a adequação técnica das estratégias; b) Completude do Contrato: a capacidade de implementação da estratégia. Ou seja, a eficácia das repostas Maximalista e Minimalista depende tanto do diagnóstico técnico quanto do consenso político.


Portanto, como salvar o maior número de pessoas? A gestão da COVID-19 implica escolhas. E escolhas comportam sempre uma margem de indeterminação. Por isto, é inevitável que gerem mal-entendidos, insatisfação ou contestação... E é por isso também que as escolhas devem ser progressivamente condicionais. Pesar os efeitos emergentes dos critérios e ajustar as decisões em função das novas informações. Afinal, as decisões não são incompatíveis: salvar vidas não significa destruir empregos, e salvar empregos não implica destruir vidas... Assim, a disjuntiva saúde e economia é falsa, porque as recompensas imediatas pesam mais que as futuras.

 
 
 
  • 31 de mar. de 2020
  • 4 min de leitura

Atualizado: 3 de abr. de 2020

Dr M. Mattedi Universidade Regional de Blumenau mam@furb.br


Depois da COVID-19 o supermercado se tornou um dos únicos lugares aonde às pessoas ainda mantém interações diretas. É que neste período de isolamento social os supermercados constituem um dos últimos espaços onde existe reunião de pessoas. Um lugar onde as interações sociais podem ser estabelecidas diretamente. Porém, as relações entre as pessoas nos supermercados não são mais como eram antes. O que antes era considerada uma atividade corriqueira agora exige planejamento. Afinal, é o contato entre as pessoas que permite a propagação do vírus. Por isto, os supermercados acaram assumindo um novo significado sociológico.


Visitar um supermercado na COVID-19 é uma experiência marcante porque permite acompanhar os efeitos do isolamento social. Cancelas abertas, fornecimento de álcool gel na entrada, higienização dos pegadores dos carrinhos de compras, faixas vermelhas delimitando a distância entre as pessoas... Tudo é feito para que os consumidores se sintam seguros. Porém, nada disso parece suficiente. Apressadas e desconfiadas as pessoas se evitam. Cobertas de mascarras e luvas, nem sequer se olham. Tentam reunir o que precisam o mais rápido possível e procuram manter a maior distância possível. E, nos carrinhos, alimentos não perecíveis e muito material de higiene.


Este processo constitui um efeito emergente da gestão do COVID-19. Para os especialistas a estratégia mais eficaz de gestão é o Confinamento Social. Parte do pressuposto que limitando as interações diretas o contágio diminui. Ou seja, quanto mais pessoas uma pessoa encontra, maior é o risco de contágio. De modo que se as pessoas permanecerem isoladas então elas estarão seguras. Neste sentido, a experiência dos supermercados indica que a esfera privada (doméstica) equivale a segurança, enquanto a espera pública (supermercado) equivale a insegurança. Consequentemente, quanto mais intensa a interação direta, maior o risco de contaminação.


Porém, inversamente, o aumento da extensão da segurança implica, necessariamente, uma diminuição das interações sociais diretas. O problema são os efeitos em contextos sociais onde o contato direto é muito intenso. Ou seja, para as pessoas e as atividades que dependem de interações profissionais e pessoais diretas. Neste sentido, a questão sociológica é determinar quais são os efeitos da duração do isolamento sobre o padrão de interação entre as pessoas. Dito de outra forma, se encontrar pessoas se tornou um risco, o que acontece com os padrões de sociabilidade quando o contato social direto não é mais possível?


Os sociólogos sempre conceberam o contato direto como uma condição indispensável da sociabilidade humana. Neste sentido, a disrupção da vida cotidiana constitui um tema muito estudado na sociologia dos desastres. O conhecimento acumulado na pesquisa em situações de emergência indica que não existe uma descontinuidade entre o período antes, durante e depois. As condições sociais existentes no período pré-impacto se transferem para as condições trans e pós-impacto. Este processo é descrito como Princípio de Continuidade: as condições sociais do Tempo-1 (pré-impacto) se transferem para as condições no Tempo-2 (trans e pós-impacto).


Portanto, para entender os efeitos do Confinamento Social nas formas de sociabilidade é preciso considerar o padrão de socialização predominante. Isto significa que se se quiser entender os efeitos da COVID-19 nas as relações sociais precisamos entender como elas estavam configuradas. Mais precisamente, se a visita ao supermercado revela que a COVID transformou o espaço público, ela também redefiniu, simetricamente, o espaço privado. Portanto, se no espaço público a eclosão da COVID-19 significou uma diminuição da intensidade das relações sociais, no espaço privado, inversamente, representou um aumento das relações domésticas.


Assim, para uma parte da população ligada ao setor de serviços o isolamento social obrigou a transferência das atividades profissionais para o espaço doméstico. Este processo teve duas consequências principais: a) a primeira a adoção das práticas de home office; b) a segunda a diluição das fronteiras entre trabalho e recreação. O efeito combinado foi tanto o aumento da dependência de recursos digitais, quando o reaprendizado da vida em família. Portanto, para os grupos sociais ligados ao setor de serviços o Isolamento Voluntário constitui a desmaterialização dos contatos produtivos e, inversamente, a rematerialização dos contatos familiares.


Porém, para a outra parte da população, submetida aos vínculos de trabalho precarizados, o processo deve ser invertido. Diante das condições econômica e social existentes antes, o risco de contaminação não altera significativamente as condições de vulnerabilidade. Quando se encontra exposto a violência, ao desemprego, a desnutrição ou a falta de assistência o Confinamento Social não significa segurança, mas, ao contrário, uma ameaça suplementar. Neste sentido, a suscetibilidade deste grupo impõe uma Aglomeração Compulsória. Consequentemente, a impossibilidade de Confinamento Social materializa as condições de vulnerabilidade social.


Ou seja, indica que a insegurança e, consequentemente, a segurança estão distribuídos socialmente de forma desigual. Afinal, se para um grupo social se proteger significa diminuir o contato direto (Isolamento Voluntário), para outro, ao contrário, significa aumentar a vulnerabilidade (Agregação Compulsória). É por isto que para o cliente do supermercado segurança é diminuir os contatos, enquanto para os trabalhadores do supermercado segurança é interagir diretamente com os clientes. Na verdade, a disposição diante do risco de contaminação reflete a assimetria de escolhas dos grupos sociais na medida que exprime as condições sociais existentes.


A crise da COVID-19 é um acontecimento que revela a dinâmica social subjacente. Por isso, uma visita ao supermercado deixa duas constatações sociológicas de alcance mais amplo: a) A insegurança é inversamente proporcional a condição social: quanto mais estável a condição social de um indivíduo, maior a sensação de insegurança diante da pandemia; b) A solidariedade é consequência da disponibilidade: quanto maior a necessidade de individuo, menor o compromisso coletivo. Neste sentido, a visita ao supermercado indica que o isolamento de grupos não contém somente o contágio, mas também as formas de sociabilidade convencionais.


A COVID-19 constitui uma oportunidade de observar a plasticidade das normas sociais em tempo real. Neste sentido, a estratégia de gestão predominante baseada no Confinamento Social constitui uma experimentação social sem precedentes. Os resultados desta gigantesca experencia ainda não podem ser plenamente estabelecidos. Porém, já é possível assinalar que à troca de Liberdade por Segurança depende fundamentalmente da condição social dos indivíduos. A relação entre o Isolamento Voluntário e a Agregação Compulsória no supermercado ensina que quanto maior a liberdade de escolha dos indivíduos, maior a busca por segurança.

 
 
 
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