Dr M. Mattedi
Universidade Regional de Blumenau
O negacionismo constitui uma das principais pragas cognitivas da atualidade. Em ciência materializa-se pela negação dos consensos reconhecidas pela comunidade científica e a promoção de ideias contrafactuais. Os exemplos de negacionismo na ciência são verdadeiramente amplos, e entre os mais conhecidos destacam-se: Holocausto, as mudanças climáticas, a circunferência da terra, HIV/AIDS, vacinas, cloroquina... Neste sentido, é irracional, seja porque existe muita crença e pouca evidência, seja porque existe muita evidencia e pouca crença. Neste sentido, o protocolo de operação do negacionismo é muito simples:
1) Reduza as informações a sinais;
2) Transforme sinais em narrativas;
3) Julgue com base nestas narrativas;
Este processo, evidentemente, não deveria nos surpreender. A facilidade com que imaginamos versões alternativas aos acontecimentos é uma das únicas constantes sociais. Na realidade, as pessoas reagem aos acontecimentos não apenas pela sua natureza factual, mas, sobretudo, por suas expectativas emocionais (Figura 1). Para além destas questões relativas a existência do negacionismo subsiste ainda o problema de saber em que circunstâncias sociais no qual é ativado e também desativado. Ou melhor, sendo certo que são as pessoas que ativam este processo trata-se, assim, de saber quais são os fatores que condicionam socialmente o negacionismo.
Figura 1 – Fatos e desejos
Por um lado, nossa imagem individual da realidade é muito imperfeita. E alguns de nossos equívocos fascinam porque são universais, recorrentes e, muitas vezes, até mesmo previsíveis. Afinal, sempre acabamos: a) enxergando o que queremos (Viés de Confirmação); b) lembrando do que nos interessa (Viés de Informação); c) vendo relações aonde não existem (Efeito Focus). É que a realidade é constituída por muitos detalhes, temos dificuldade de lembrar de todas essas particularidades e, ainda por cima, não conseguimos processar muita informação. O efeito combinado é que sempre acabamos projetando nossos desejos nas nossas observações.
Por outro, estabelecer uma inferência causal é muito difícil. Afinal, entender as relações de causalidade implica determinar a covariação de antecedentes e consequentes. Afinal, como ensina Hume, uma causa é definida pela regularidade com que um acontecimento é seguido de outro. E onde todos os acontecimentos semelhantes ao primeiro, são seguidos por acontecimentos semelhantes ao segundo. Isto significa que o primeiro é considerado causa e o segundo consequência: se o primeiro acontecimento não tiver acontecido, o segundo nunca existiria. Neste sentido, o negacionismo inverte a relação e vai das consequências às causas.
O fato incontestável é que o negacionismo é um fenômeno cognitivo que está aumentando. Com a proliferação das plataformas de mídias sociais como o Facebook, o Youtube, o Twitter e o Whatsapp o negacionismo acabou se fortalecendo. Ocorre, contudo, que em situações de emergência o negacionismo se tornou particularmente nocivo. Afinal, acaba ameaçando a segurança coletiva. Neste sentido, o negacionismo da COVID-19 refere-se ao pensamento daqueles que questionam a pandemia ou que relativizam sua gravidade. Sendo as possibilidades de imaginação e da internet ilimitadas, como podemos eliminar conteúdo contrafactual?
Coletivamente conseguimos desenvolver uma forma de evitar a recorrência sistemática destes equívocos. Esta forma constitui um conjunto de operações conhecidas como método científico. O método científico compreende uma das mais espetaculares invenções porque permite o aperfeiçoamento de nossas crenças sobre a realidade. Isto acontece porque baseia-se num conjunto de procedimentos para produção do conhecimento: observar, classificar e interpretar os acontecimentos por meio da apresentação de hipóteses. Este processo possui duas características principais: a) Factualidade empírica; b) Controle coletivo.
a) Factualidade empírica: o conhecimento científico é uma crença justificada empiricamente. Mais precisamente, as reivindicações científicas precisam ser testadas empiricamente para terem validade. Para que possamos para acreditar na existência de fenômeno (coisa ou acontecimento) precisamos de evidências de que fenômeno existe. Opera, neste sentido, por meio de uma comparação entre um resultado factual e a sua alternativa contrafactual. Indica, portanto, que só podemos ter muita crença quando dispomos de muitas evidências. Baseia-se, portanto, no suporte experimental.
b) Controle coletivo: o conhecimento científico é controlado intersubjetivamente. Como toda instituição social também a ciência tem padrões específico de funcionamento e seleção de seus membros. Para ser aceito como cientista um pesquisador precisa submeter suas reivindicações científicas ao exame de toda comunidade. Este processo não elimina as falhas e fraudes, mas inibe de forma significativa a prevalência. Neste sentido, a principal característica do conhecimento científico é que ele é intersubjetivo. Isto significa que quanto mais aberta a comunidade científica, maior o controle.
Por isto, o conhecimento científico não é uma relação apenas do cientista com a realidade, mas também a relação do cientista com outros cientistas. Com o conjunto de procedimentos do método científico verificamos que as crenças devem ser fundamentadas em evidências: a) Conhecimento não-científico: muita crença e pouca evidência (ex. reencarnação), ou pouca crença com muita evidência (ex. a terra é redonda) não são científicas; b) Conhecimento científico: o conhecimento científico estabelece que uma crença só é alta quando as evidências também são altas (Figura 2). O método científico requer inteligência, imaginação e criatividade.
Figura 2 – Tipo de conhecimento
O negacionismo é uma praga cognitiva que tem cura. Diante de nossas distorções mentais e da poeira informacional levantada pelas mídias sociais a única forma de enfrentar o negacionismo constitui a ciência. Isto envolve, por um lado, o monitoramento metodológico do conhecimento, por outro, o reconhecimento da validade do controle intersubjetivo. Mas isto implica tanto a melhoria da qualidade da comunicação científica, quanto a participação dos cientistas no debate público. Assim, é mais difícil para o negacionismo apresentar alternativas contrafactuais e negar as constatações científicas. Portanto, o negacionismo é uma praga que se nega com mais cognição.
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