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  • Foto do escritorMaiko Rafael Spiess

VIDA E MORTE CLOROQUINA

Prof. Dr. Maiko Rafael Spiess

mspiess@furb.br


A pandemia de COVID-19 persiste e suas consequências se multiplicam. Vivemos em um ambiente de incertezas a respeito dos mecanismos de transmissão, atuação do vírus no corpo humano, número real de doentes, e impactos sociais e econômicos. Infelizmente, algumas dessas incertezas são potencializadas pela polarização e disputas narrativas: no caso da adoção do isolamento vertical ou da estratégia de lockdown, por exemplo, a abordagem analítica e técnica é frequentemente distorcida pelos argumentos ideológicos e pela atuação ruidosa de uma minoria radicalizada.

A mesma lógica vale para a cloroquina. De todas as questões e polêmicas sobre a relação entre a substância e o novo coronavírus, a única certeza que podemos ter é que esse medicamento tem demonstrado alguma eficácia no processo de derrubada de Ministros da Saúde. Tanto no caso de Luiz Henrique Mandetta quanto na recente demissão de Nelson Teich, a oposição entre Bolsonaro (agressivamente favorável ao uso da cloroquina) e os ministros (cientificamente moderados) foi importante para o processo de “fritura”, o inevitável afastamento político e desligamento institucional.

A fixação de Bolsonaro com a cloroquina vem sendo demonstrada e reiterada ao menos desde meados de abril. Também é recorrente a postura de parcelas da população que, em certa medida, encorajadas pelas palavras presidenciais repercutem o tema e amplificam o clamor pelo medicamento. Ocorre que na maioria dos casos, o desconhecimento é grande e a convicção é exagerada – e esta é uma combinação perigosa. Particularmente arriscado é o pensamento mágico sobre o tema. Mais precisamente, a noção de que a cloroquina deve funcionar porque se acredita que ela precise funcionar.

Com isso, muitas concepções incorretas se transformam em falsas “verdades”. Não é correto, por exemplo, que a cloroquina tenha qualquer efeito preventivo; afinal, não se trata de uma vacina. Essa postura também faz com que pessoas compartilhem conteúdo recebido na Internet sem checar as fontes, a veracidade e consistência dos fatos relatados. É o caso do “primo curado após tratamento com cloroquina”, que foi reproduzida nas redes sociais de forma automatizada e que, no final das contas, sequer era verdadeira. Assim, as mentiras são favorecidas por um ambiente de alta e ingênua credulidade.

Essa posição sobre o tema desconsidera praticamente todos os procedimentos existentes sobre o teste de medicamentos. Menospreza os potenciais riscos e os procedimentos técnicos para garantir a segurança de pacientes e voluntários. Sobretudo, em sua versão mais extremada, ataca e desacredita as comunidades médica e científica. Ainda que sejam passíveis de cometer erros (são, afinal, humanos), muitos médicos e cientistas acumulam incontáveis horas de estudo, pesquisa e prática, e carreiras inteiras devotadas às nuances sobre os testes e uso clínico de medicamentos. Portanto, não é de hoje apenas que conhecem esse assunto.


Figura 1 – A molécula de cloroquina



É possível supor que a reação desmedida sobre a cloroquina esteja relacionada com a polarização radical da política e a baixa qualidade da alfabetização científica da população brasileira. No primeiro caso, os vieses de informação e ideológicos bloqueiam o debate racional. Mas o segundo ponto parece ser ainda mais importante. Afinal, o desconhecimento simplifica perigosamente o debate. É preciso lembrar que a Ciência dificilmente constrói conclusões em termos absolutos. Nos casos de testes de medicamentos, em especial, a abordagem é estatística – ou seja, busca identificar quais procedimentos possuem maior chance de sucesso.

Esses detalhes, porém, são frequentemente ignorados. De fato, os processos de testes de medicamentos envolvem diferentes etapas e fases, com controles estatísticos rigorosos e cuidados com a verificação de efeitos adversos. E isso pode levar tempo. Frequentemente, nos casos em que os estudos preliminares demonstram repetidamente uma eficácia muito baixa em termos percentuais, a pesquisa com a substância ou tratamento é interrompida. Isso ocorre porque os custos e riscos envolvidos não se justificam do ponto de vista ético ou mesmo mercadológico. De forma simplificada, as chances de sucesso são baixas ou os riscos muito altos.


Figura 2 – Fases dos estudos clínicos



Por isso, é importante conhecer o estado da discussão sobre o uso da cloroquina e os procedimentos científicos que embasam essas pesquisas. Assim, devemos considerar não apenas os resultados de algum teste isolado (como o estudo francês que desencadeou a “onda da cloroquina”), mas em especial as meta-análises. Esses estudos reúnem e avaliam conjuntamente os resultados de diferentes testes, em diferentes contextos clínicos, para tirar conclusões sobre a maior quantidade possível de dados. Logo, tratam de “grandes números” ao invés de evidências de casos individuais, selecionados de forma parcial.

As buscas em bases de artigos científicos indicam um número crescente de meta-análises sobre o uso da cloroquina para tratamento de infecções causadas pelo Sars-CoV-2. No estado atual da discussão, as evidências são contraditórias: alguns estudos indicam que a cloroquina e seu derivado hidroxicloroquina não possuem eficácia e segurança significativos; outros apontam para resultados mais promissores. Porém, em particular, essas revisões sistemáticas indicam que a maioria dos estudos existentes são metodologicamente frágeis, baseiam-se em estudos in vitro (apenas laboratoriais) ou com números muito baixos de pacientes.

Alguns estudos mais recentes sobre o uso da cloroquina vêm sendo conduzidos com populações maiores. Isso é muito importante, pois com um número maior de pessoas, é possível descobrir regularidades estatísticas. Testes conduzidos com poucos participantes estão muito mais sujeitos ao acaso ou outros fatores não identificados. De forma simplificada, um tratamento que funcione para uma pessoa pode ser inútil ou, ainda pior, nocivo para o tratamento de dezenas de outras pessoas. Para descobrir isso, é preciso repetir os experimentos com muitas, muitas pessoas, em diferentes condições e com diferentes históricos de saúde.

Finalmente, vale lembrar que um comunicado recente de diversas associações médicas, entre elas a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (que congrega os médicos de UTIs, vejam só!), afirma que “as evidências disponíveis não sugerem benefício clinicamente significativo do tratamento com hidroxicloroquina ou com cloroquina”. Portanto, de forma muito direta: as especialidades médicas mais diretamente envolvidas com o tratamento intensivo da COVID-19 não observam nenhuma vantagem no uso da droga. Tudo indica, portanto, que a cloroquina não salva vidas como fazem parecer seus defensores.

O governo federal, no entanto, parece acelerar a marcha da cloroquina e aumentar a aposta. O problema é que essa aposta talvez seja muito alta: caso a cloroquina seja realmente eficaz no tratamento para a COVID-19, vidas serão salvas e Bolsonaro se capitaliza politicamente; caso contrário, corremos o risco de investir muitos recursos em uma busca fútil. Na pior das hipóteses, a depender dos potenciais efeitos colaterais negativos, podemos prejudicar gravemente os pacientes e aprofundar a crise. Infelizmente, os robôs e as redes de fake news não se importam com essas sutilezas, mas apenas com a polêmica e a repercussão.

Em todos os casos, o pensamento mágico (otimismo exagerado) e o emprego da cloroquina como a “bala de prata” (solução única), que substituirá a estratégia do isolamento e a necessidade de testes, são apenas mais alguns indícios da politização da pandemia. Mesmo que a cloroquina seja eficaz, seu uso não substituirá completamente outras medidas. Porém, estamos forçando sobre a Ciência o ritmo da política e observando as táticas de Bolsonaro para polemizar o debate, desviando a atenção de seus impasses políticos. É necessário compreender que a onda da cloroquina beneficia mais a uns do que outros.

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