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A GRANDE BIFURCAÇÃO

Atualizado: 3 de abr. de 2020

Dr M. Mattedi Universidade Regional de Blumenau mam@furb.br


O COVID-19 converteu o padrão de relações entre as pessoas. De Hubei a Milão, passando por Madri, Paris, São Paulo ou Nova York... a disseminação do COVID-19 mudou o modo de vidas das pessoas. Um bilhão de pessoas foram confinadas socialmente para evitar o contágio. A adoção do confinamento social como estratégia de gestão tem profundas consequências sociais. Trancar as pessoas em casa, parar o sistema de produção, imprimir dinheiro para dar aos cidadãos... Não existe menor dúvida que se trata da maior experimentação social todos os tempos. A única questão é determinar quais serão os efeitos de longo prazo deste processo.


A doenças contagiosas são velhas companheiras dos seres humanos. Varíola ou lepra, tuberculose ou gripe... A lista é formidavelmente grande. É que o progressivo processo de concentração espacial da população tornou as doenças contagiosas comuns. Afinal, em vez de atingir pequenas comunidades dispersas espacialmente passaram a afetar grandes concentrações populacionais. Ao mesmo tempo, a concentração da população intensificou a divisão do trabalho e aumentou a capacidade de reação. Isso, por um lado, ampliou a capacidade de detecção rápida de novas doenças, mas, também, por outro, a produção em larga de medicamentos.


De fato, a importância de uma doença para os seres humanos depende muito das outras doenças. Afinal, a relação entre a sociedade humana e as doenças é multidirecional. Por exemplo, o aparecimento da penicilina eliminou gradualmente as doenças bacterianas, permitindo o surgimento de doenças virais até então latentes. Atualmente centenas de laboratórios em mais de 100 países monitoram o surgimento de novos vírus todos os dias. Estes laboratórios circulam entre eles as informações necessárias para monitorar os espaços epidemiológicos globais. Trata-se de uma relação de coconstrução e não uma disseminação incontrolável de vírus.


Portanto, as pandemias deixaram de ser vistas como doenças simples de larga escala. Ao contrário, refletem os vínculos entre práticas alimentares, degradação ambiental e mecanismos de disseminação global de novas linhagens de vírus. Na verdade, refletem o padrão predominante de desenvolvimento socioeconômico. Neste sentido, confrontar uma pandemia é confrontar a forma como estamos organizados socialmente. Diante da complexidade do desafio a estratégia predominante adotada constitui o Confinamento Social. A ideia por trás desta estratégia é simples: quanto maior a distância entre as pessoas, menor a probabilidade de contágio.


As consequências desta experimentação ainda não podem ser precisamente determinadas. Porém, tudo indica que as relações sociais nunca mais serão como eram antes. Afinal, esta não é apenas uma crise sanitária, econômica ou política, mas uma crise societária. O impacto do COVID-19 será tão profundo que se estabelecerá uma ruptura social, fazendo que as pessoas parassem de se movimentar, de sair, de gastar, de participar... Logo a forma como as pessoas trabalham, se divertem, rezam está sendo progressivamente redefinida. Isto significa que atividades como a educação, turismo, lazer, esporte, trabalho tende a ser profundamente afetadas.


A principal questão é, portanto, determinar quais são as consequências da interdição da circulação de pessoas e mercadorias para o modo de vida moderno. Afinal, não podemos esquecer que o objetivo principal da estratégia do Distanciamento Social não é evitar o contágio, mas, simplesmente, impedir o colapso sistema de saúde. Pois principal problema não é a letalidade do vírus, mas, sobretudo, a intensidade do contágio. Os efeitos emergentes desencadeados pelo processo de confrontação indicam que estamos diante de uma espécie de bifurcação civilizacional. Neste sentido, até o presente é possível diferenciar dois caminhos principais.


Um caminho segue em direção da abertura. Afinal, a experimentação social indica que é possível mudar o padrão predominante de desenvolvimento. A situação de emergência tende a acelerar a Transição Ecológica na medida que o confinamento social possibilitou uma melhora significativa na qualidade ambiental do planeta; mas também, mostra a possibilidade de distribuição da riqueza como indicam as iniciativas governamentais de pagamento de salários para que os trabalhadores não sejam demitidos. Portanto, a melhora da qualidade ambiental e a assistência solidária apontam para possibilidade de novas formas de sociabilidade num “Cenário Gaia”.


O outro caminho leva é conduzido na direção do fechamento. Assim, a propagação do COVID-19 aumentará a insegurança acionando os instintos de sobrevivência mais básicos. Neste sentido, a experimentação social em curso reforçará o monitoramento cibernético e biométrico das populações. Por isto, a situação de emergência acabará, inevitavelmente, reforçando as barreiras sanitárias e aumentando os contatos indiretos por meio da vida virtual. Isto significa o estabelecimento de um novo patamar de individualização baseado na privacidade. Consequentemente, aumentará o fechamento cultural e o isolamento social num “Cenário Big Brother”.


Enquanto o COVID-19 abre novos caminhos, a questão é, portanto, se as marcas deixadas pela pandemia serão transitórias ou passageiras. Afinal, não se pode determinar ainda se mediação sociotécnica posta em operação para conter o COVID-19 será excessiva ou insuficiente. Mais precisamente, se o Confinamento Social a que foram submetidos milhões de pessoas vai potencializar o egoísmo individual ou despertar altruísmo social. Afinal, a oposição entre o Caminho do Medo e Caminho da Esperança esconde a tensão entre Solidariedade e Controle. Portanto, o isolamento social está moldando a forma de vivermos juntos.


As estratégias de confrontação da COVID-19 podem levar a um questionamento do nosso modelo de existência. Isto acontece porque permitiram reinventar a noção de vida comum. Neste sentido, as mudanças induzidas pela COVID-19 constituem, ao mesmo tempo, uma ameaça e uma oportunidade. Afinal, desperta, paradoxalmente, os instintos de sobrevivência latentes; mas também, favorece a emergência de novas formas de solidariedade. Por isto, a COVID-19 não deve ser vista apenas como uma pandemia, mas, sobretudo, uma grande experimentação social. É bem possível que os caminhos se cruzem, porém nunca mais serão como antes.

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