Dra. Maria Salete da Silva
Me. Maria Roseli Rossi Avila
Universidade Regional de Blumenau
Em tempos de COVID-19 tem-se constatado iniciativas oriundas do Estado e da sociedade como forma de enfrentamento da crise em suas distintas dimensões. Para efeitos desta reflexão, destacam-se as ações de enfrentamento produzidas a partir da sociedade.
Os veículos de comunicação noticiam ações solidárias e individuais, como a distribuição de alimentação para idosos [link] e trabalhadores do transporte de cargas [link], fabricação solidária de máscaras [link] e doação de materiais de higiene para segmentos empobrecidos.
Ganha destaque também a mobilização de indivíduos e de grupos que utilizam plataformas para criar suas petições e gerar abaixo-assinados que se constituem como ferramentas para denunciar situações de privação e de desrespeito aos direitos e à vida, bem como para reivindicar respostas do poder público e do empresariado. Cita-se como exemplo as mobilizações registradas na Change.org [link], tais como a petição que reivindica acolhida e álcool em gel para moradores de rua, alimentação e álcool em gel para motoboys entregadores de aplicativos, equipamentos de proteção individual e quarentena remunerada para empregadas domésticas e diaristas, liberação do FGTS inativo para desempregados, dentre outros.
Além das iniciativas acima, ganham visibilidade ações de enfrentamento à crise, em regiões de vulnerabilidade social, protagonizadas por meio da organização comunitária. Nestes territórios observa-se a ausência ou a fraca presença do Estado no cotidiano da população. Em decorrência, comunidades da periferia das grandes cidades do país passaram a se organizar para enfrentar a crise. Cientes de que serão brutalmente atingidas e de que o Estado não se fará presente para atender as suas necessidades, lideranças comunitárias têm mobilizado os moradores para pensar e desenvolver ações para o enfrentamento direto da crise.
Cedo perceberam que não há plano de enfrentamento da COVID-19 para áreas marcadas pela realidade urbana/populacional de suas comunidades, já carentes de serviços públicos. Como aplicar o distanciamento social em moradias diminutas, habitadas por várias pessoas, sem condições sanitárias? Como dispor de produtos de higiene (caros ou inexistentes) para reforçar os cuidados? É quase impossível praticar o isolamento de pessoas contaminadas, bem como adquirir o sabão, o álcool em gel e as máscaras para a proteção dos indivíduos. Em síntese, como cumprir as orientações do Ministério da Saúde em lugares onde a pobreza potencializa a vulnerabilidade e o risco?
Embora constitua uma ameaça à vida, observa-se que parte da população brasileira não acredita no risco de contágio e na forma grave que a doença pode assumir, exigindo atendimento hospitalar e de alta complexidade. Em relação ao distanciamento social, constatam-se posições distintas entre autoridades públicas, empresários e pessoas que exercem influência através das mídias. Tais posições dissonantes contribuem para gerar dúvidas acerca das medidas de prevenção, em que pese a posição favorável ao distanciamento social horizontal expressa pelo ex-ministro da saúde. Há, ainda, uma profusão de informações circulando e, com a mesma rapidez, parte delas é desmentida, dificultando a formação de opinião e a adesão às orientações dos profissionais de saúde.
Reportagens veiculadas nas TVs, rádios e jornais mostram moradores aglomerados em praças, supermercados, feiras e ruas por todo o país. Outros protestando contra o distanciamento horizontal nas mídias sociais. Mas existem aqueles que já perceberam o grave problema de saúde pública batendo à porta e acreditam que tal medida é necessária.
No entanto, as estratégias de prevenção não foram pensadas para a população pobre, que mora em espaços de aglomerações urbanas nos quais as casas possuem poucos cômodos, são coladas umas às outras, há pouca circulação de ar, poucas horas de sol e muita umidade. Ou seja, são ambientes propícios para a disseminação da COVID-19, entre outras doenças. Considerando tal cenário, se alguém for contaminado, como cumprirá o isolamento para proteger a família e os vizinhos?
Fonte: Basso (2020).
Sabendo-se sozinhas, algumas comunidades decidiram se organizar para enfrentar a situação. Dentre as experiências, cita-se a comunidade de Paraisópolis (SP). O G10[1] daquela comunidade dividiu as lideranças (presidentes e vices recém empossados) em 420 duplas. Cada uma delas é responsável por, pelo menos, 50 famílias das vias em que moram (SANT’ANNA, 2020). Outro exemplo é a comunidade do Complexo do Alemão (RJ), que criou o Gabinete de Crise e diversos outros coletivos como o Juntos pelo Complexo, Coletivo Papo Reto, Voz das Comunidades, entre outros (CISCATI, 2020). Também em São Luis (MA) a comunidade do Coroadinho criou o Comitê do Coroadinho sem Corona onde cada membro voluntário cuida de 25 famílias. Em Aglomerado da Serra (BH) a comunidade foi dividida em oito vilas, cada qual com lideranças que atuam de forma capilarizada.
As comunidades utilizam diversas formas de prevenção e apoio. A orientação vem por meio de “cartazes, dicas de prevenção via WhatsApp, arrecadações de cestas básicas, orações para quem está aflito, gabinetes de crise, cozinhas coletivas, presidentes de ruas” (KOMUKAI, 2020). Paraisópolis contratou médicos, enfermeiros e ambulâncias 24 horas por dia. A comunidade vai colaborar financeiramente para manter o serviço (EISENHAMMER, 2020), em clara substituição à ação do Estado. Como afirma Komukai (2020), “Onde a urbanização não chegou como deveria, o senso comunitário é a chave mais potente”. Mas, apesar dos esforços das lideranças e do sistema de atendimento instalado, o número de casos suspeitos de infecção aumentou consideravelmente, conforme noticiado (BASSO, 2020).
Especialistas em desastres do mundo todo concordam que a gestão da crise deve ocorrer em todos os níveis (federal, estadual, municipal). Falam da necessidade da participação social na gestão, da inclusão dos saberes e conhecimentos locais. Considerando as condições objetivas destas comunidades, fica a pergunta: no caso da COVID-19, entidades como as Associações de Moradores e outras lideranças comunitárias estão sendo chamadas para participarem do processo de geração de alternativas à crise, como o são os empresários, banqueiros e lideranças religiosas?
[1] G10: Criada em 2019, entidade reúne dez das mais populosas favelas do país. Pensa estratégias e investimentos que incentivem a economia da comunidade local. Capilariza as ações via projetos “Prefeitos de Rua”.
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